Primeiramente, venho
declarar minha eterna paixão por Shakespeare. Para mim, ele é um gênio da
literatura dramatúrgica, criou peças clássicas e inesquecíveis como Macbeth, Othello,
Romeu e Julieta, ninguém explicou melhor a natureza humana e seus temores até
hoje. Shakespeare influenciou a inspiração artística e a literatura
contemporânea, e hoje, por mais que ele não esteja na moda, muitas pessoasainda
se identificam e apreciam os dramas levantados por ele, independentemente da
época.
Acho importante como
primeiro post falar sobre um personagem da obra de Shakespeare, pois nele
conseguimos, a partir de uma literatura clássica, aprofundar em alguns aspectos
da subjetividade do personagem, entendendo melhor seus comportamentos, suas
paixões, e o que os move. Claro, um personagem nunca será compreendido em sua
totalidade essencialmente por ser ficcional, mas penso que seria interessante
analisar e tentar entender um pouco mais o que se passa na cabeça do mesmo, e
na nossa também quando vivenciamos seus dramas. Proponho a mim mesma algumas
perguntas ao ler um livro, como: ‘O que esse personagem ‘comove’ à minha
pessoa?’, ‘O que ele ‘comove’ no outro?’,‘O que ele representa para mim?’, ‘O
que ele representa para o outro?’.
Este mês o personagem
que escolhi foi Ofélia, da peça “Hamlet”. Hamlet é certamente a mais bem-sucedida história de vingança levada aos palcos. Ofélia é amante de
Hamlet na peça, e esta personagem é a mais famosa de Shakespeare que, apesar de ela surgir como uma personagem
secundária, a mesma se afirma com uma expressiva recepção histórica, sobretudo
nas artes visuais, marcada como símbolo da fragilidade feminina que leva a
loucura e a morte.Mas, como aconteceu
sua história? Como se deu sua loucura? Porque o suicídio?
A história de Ofélia e
seu desfecho gerou até mesmo um complexo, chamado “Complexo de Ofélia’.Entendo
como essencial algumas pessoas lerem primeiramente a peça para depois buscar a
essa análise. Indico esta leitura as garotas e mulheres de plantão. Boa
leitura!
“O Complexo de Ofélia seria a prisão no desejo de um homem
ou, mais ainda, a prisão de todos no desejo patriarcal. Mas o que é o desejo
senão aquilo que faz viver e que, realizado, se define na morte? O Complexo de
Ofélia simboliza um acordo no campo do desejo em que mulheres são negadas ou
subordinadas, enquanto homens prevalecem como protagonistas.” TIBURI, M. (2010)
“ Na minha leitura, a
loucura de Ofélia poderia ser compreendida como ‘loucura e não loucura’ ao
mesmo tempo. Os delírios no lago e posteriormente, seu trágico suicídio, foram
tentativas de utilizar todos os recursos que ela disponibilizava uma vez que,
apesar de estar visivelmente desequilibrada, sua fala irracional e suas
atitudes demonstram que foram as melhores formas que ela conseguiu lidar com o
seu ambiente, considerando sua existência frágil vivenciado em um contexto histórico
completamente opressor à figura feminina.
Ao mesmo tempo em que
a história de Ofélia talvez não apetecesse as feministas de plantão (pois
muitas vezes não gostamos de ver em outro uma possibilidade na qual, em algum
nível, possamos nos identificar), brinco até que Ofélia demonstra um
contraponto simbólico, na qual se houvesse espaço nos tempos de Shakespeare
para a ‘marcha das vadias’, daria uma margem para um tremendo discurso
feminista do século XVI.
Desde o início, a
identidade de Ofélia aparece ser externamente e socialmente construída.
Completamente restringida pelos homens ao seu redor, Ofélia foi moldada conforme
as exigências externas, para refletir os desejos dos outros. Ela é usada,
abusada, confundida - absolutamente manipulada pelos homens em sua vida: pai,
amante, irmão, o rei. Ofélia tem sido claramente desprovida de fomento materno,
exilada em uma ilha dominada por homens. Parecendo absorver a ausência de
crença na sua própria inteligência e autonomia, Ofélia é deixada com uma
identidade aberta à sugestão externa. Tanto o irmão e o pai sufocam Ofélia em
um estrangulamento, levando a sérios riscos em seu desenvolvimento psicológico.
Para Laerte, seu
irmão, Ofélia é vista como uma figura casta, a quem ele pode colocar em um
pedestal. Enquanto (ele acredita) ele a tem em segurança das garras dos homens,
Laertes tenta ensinar sua irmã para ter medo dos avanços masculinos.
"Tenha medo, Ofélia, medo dele, minha querida irmã". Laertes repete
uma e outra vez - "dele" está sendo desejo de Hamlet.
Considerando que
Ofélia é um anjo para Laertes, ela é um beneficio para Polônio, seu pai, sendo
uma mercadoria a ser disponibilizada
para o seu o maior lucro. Polônio educa sua filha para ser extremamente obediente,
disposta a aceitar todos os seus comandos. Avisando-a que ela não pode agir por
conta própria, Polônio a proíbe ter uma autonomia de sua escolha, de sua ação,
e ainda de seus próprios pensamentos. "Você não entende tão claramente /
como cabe minha filha e a sua honra. Mas vou ensinar-lhe,”; "Pensa-te como
um bebê". As ‘aulas’infantilizantes do pai, enquanto prejudicial para Ofélia,
provam ser benéficas para o mesmo.Tendo negado o acesso gratuito de sua filha a
Hamlet por muitos dias, Polônio, em seguida, oferece sua filha ao Príncipe, a
fim de provar sua lealdade para o Rei para elevar seu status social.
Depois que Ofélia foi
agredida por Hamlet durante a cena do “teste de amor” de Polônio, o Rei e o seu
conselheiro debatem, o estado mental do Príncipe durante várias páginas antes
que seu pai se lembre dela. Quando, no final da cena, os dois saem da sala, não
existe nenhuma ação de conforto ou de ajuda a Ofélia, ela é simplesmente
esquecida.
Da mesma forma, Hamlet, amante de Ofélia,
descuidadamente ignora suas necessidades em favor de sua própria. Na imaginação
de Hamlet, para uma mulher ser "honesta" significa que ela deve ser
casta e leal, não podendo ser “autônoma”. Não somentepela conduta moral
encontrada na época, mas por ser o ideal de mulher que ele gostaria que a mãe
dele fosse e ele ‘projeta’ esses ideais na futura companheira. Vê-se isto, pois
na visão de Hamlet, sua mãe Gertrude tem se mostrado ‘desonesta’ ao exercer sua
autonomia e casar-se novamente após a morte de seu pai,o que Hamlet experiência
como uma versão aterrorizante do desejo feminino. Ao ir ao quarto de Ofélia,
Hamlet lê o rosto dela e, em seguida, levanta um suspiro, e parece deduzir sua
culpa, alinhando Ofélia com Gertrude.
Hamlet projeta sua
ansiedade sobre a
"traição" de sua mãe
para Ofélia. Assim,
quando Ofélia parece exercer ação autônoma (como Gertrude
tinha), negando acesso amoroso de Hamlet e retornando suas cartas de amor, ele
torna-se abusivo com ela. Ironicamente, Ofélia,no momento de revolta de Hamlet,
se comporta não autonomicamente, obediente aos desejos patriarcais, pois seu
pai ordena que ela conquistasse o Príncipe. Para Hamlet, Ofélia representa seus
receios psíquicos, como a figura de uma mulher desonesta.
Com sua identidade
construída sempre em referência a outro, Ofélia é, em essência, nada, um
ninguém vazio esperando para ser dito qual o seu significado.
No meio de seus jogos com
Ofélia, Hamlet insere um discurso que pede que ela duvide de todas as suas
palavras: "os homens são todos tolos, acredite em nenhum de nós".
Quem é que Ofélia deve acreditar? Ela pode responder apenas "Eu não sei,
meu Senhor, o que eu deveria pensar”. Separada de qualquer senso de identidade
pessoal, ela admite a Hamlet, "Acho que nada, meu Senhor". Então quando seu irmão vai à França e seu amante é
banido pelo assassinato de seu pai, Ofélia éconfrontada com um ‘silêncio’ das
ordens dirigidas a ela, e então torna-se louca.
A loucura torna-se o
último recurso de Ofélia, é sua revolta inconsciente. Na verdade, o que mais
resta para ela fazer? Sua realidade fundada para aceitar o comando masculino,
como então, sem ele, pode ela agir em seu próprio nome? Todos os homens em sua
vida brincariam com os seus sentimentos. Oferecendo uma fuga, a loucura permite
a ela finalmente falar de sua raiva e desejo. A loucura libera Ofélia das
funções de filha, irmã, amante, objeto. Quando Ofélia fica louca e canta sobre
uma mulher jovem, como ela mesma, usada e abandonada pelo seu amante, podemos
dizer que a música pode refletir quão profundamente ela tem interiorizado os
maus tratos de ambos Hamlet bem como os desejos masculinos que foram plantados
em sua cabeça por seu pai e irmão.
Seu discurso louco
demonstra que seu ‘self’ está fragmentado. O importante trabalho que sua psique
tenta é encontrar um via do qual ela possa protestar a repressão de sua vida
inteira.Sem ninguém disposto a ouvir ou capaz de ouvir a verdade
incoerente de Ofélia, sua "razão na loucura" e qualquer possibilidade
que parecia levar asua libertação,resultaao suicídio.
Espero que tenham
gostado! Para alistara este discurso, mês que vem farei uma análise de SANSA
STARK, personagem das Canções de Gelo e Fogo de George Martin do conhecido
seriado “Game of Thrones”. Apesar de ambas viverem em universos paralelos,
encontramos semelhanças na proposta dos períodos históricos em que vivem e seus
papéis femininos, permeados de ideais e condutas sociais a serem submetidas.
Ambas se mostram peças de um jogo, na qual não se tem voz e devem exercer
perfeitamente seus papéis para sobreviverem.
Vejo vocês mês que
vem!
Texto escrito por Luisa Gomes
->TEXTO
DE AUXÍLIO / REFERÊNCIAS:
TIBURI, M. (2010) - http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2010000200002&script=sci_arttext